terça-feira, 24 de junho de 2008

“Desde minha fuga, era calando minha revolta (tinha contundência o meu silêncio! Tinha textura a minha raiva!) que eu, a cada passo, me distanciava lá da fazenda, e se acaso distraído eu perguntasse ‘para onde estamos indo? ’ – não importava que eu, erguendo os olhos, alcançasse paisagens muito novas, quem sabe menos ásperas, não importava que eu, caminhando, me conduzisse para regiões cada vez mais afastadas, pois haveria de ouvir claramente de meus anseios um juízo rígido, era um cascalho, um osso rigoroso, desprovido de qualquer dúvida: ‘estamos indo sempre para casa’“.

(Raduan Nassar in Lavoura Arcaica)

sábado, 21 de junho de 2008

Por que nascem as estrelas?




E se esse nosso mundinho for o resultado de um violento e dramático choque de estrelas, com a explosão e fusão de ambas nesse nosso Sol? E se a poeira restante tiver formado mesmo esse bando de planetas, luas, asteróides e cometas que formam o nosso familiar sistema solar?

E se a vida for a conseqüência natural das condições ideais de acúmulo de compostos químicos sob a influência oportuna de determinadas condições de temperatura e pressão? E se a inteligência humana não for mais do que o resultado de uma sucessão de bem-sucedidas mutações genéticas, que prosperaram e se perpetuaram, e acumularam vantagens sobre vantagens em decorrência da seleção natural dos espécimes mais aptos, mais adaptados a superar as dificuldades impostas pelo acaso?

E se a propensão humana às ciências, às artes e à fé não passarem de uma espécie de programação do nosso cérebro, que nos impulsiona a imaginar sempre, criar sempre, ter fé e esperança sempre, numa busca incessante e impossível pela Eternidade – suprema amplificação da vida, aquela “busca da vida por si mesma” de que fala o Poeta Drummond?

E se essa nossa crença em um “Ser Superior” não for mais do que o resultado bem calculado pela inteligência infinitamente superior daquele ET que primeiro empurrou uma estrela na outra, e começou esse delicioso caos arquitetado, já com a intenção também de perpetuar-se, ou de começar um universo melhor do que aquele que ele tinha? Vai que ele achou de calcular tudo isso de tal forma que findasse n’agente crendo em um Deus, por ter chegado à conclusão de que era melhor ter que crer em algo além de nós mesmos?

E se esse ET também estiver buscando a explicação de tudo? E se ele já souber as respostas? E se ele houver descoberto as respostas, mas não a eternidade? E se estivermos fadados a repetir aquele ET? E se ele quis que o fizéssemos, pra começo de conversa? E se, de cada ET (ou Deus), surgiu (e surgirá) um Outro, melhorado mas ainda incompleto, ad infinitum?

E se, assim, tivermos, cada um de nós, um tantinho de deuses, a herança infinitamente ancestral e eterna de uma Busca perpétua, que sempre termina em nós mesmos?

terça-feira, 3 de junho de 2008

Tirando uma de Guimarães Rosa



Ilustração de Poty para "Grande Sertão: Veredas"


Figuro que sou diferente de todos, mas talvez nem seja tanto assim: minha vida decorreu trivial, sem grandes feitos de se exclamar nem grandes defeitos penados, purgados. Fui sertanejo, não sou mais – nem sei o que eu seja. Não me acho dentro de mim, a coisa definida, o meu algum miolo. Eu sou é água, mas não rio que corre: eu sou lagoinha funda de água barrenta. Em mim me perco, suspenso. Eu sou o nada pastoso, areia movediça.

E sido assim de em desde menino, pelo que me lembro demais de fantasioso, e solitário mesmo quando em bando de camaradas meus. Brincassem de alguma coisa, eu brincava com eles, mas era de coisa diversa, de significados em mim diferentes produzindo aqueles mesmos fazeres de menino: a fantasiação me pondo à parte, em ares demais de coloridos, demais de com garranchos de ordem somente. Era pau? Era, era espada coruscante para mim. Era pedra? Era jóia de poderes feiticeiros. Esconder-se: caçar ou tocaiar. Tudo sendo A Aventura sempre, de heróis e coragens, e a magnanimidade de Reis e Generais e os bons bandidos, por essa vida arrevesada, e bonita pelas cintilações desencontradas das muitas variadas pedras preciosas.

Sabiam meus camaradas que desempenhavam papéis próprios em minha estória só minha, alheia da deles, eu em mim forçando a Ordem daquilo tudo? Não, crianças são mundos. Não sei quem era eu dentro deles, também: fazendeiro ou soldado, ou ladrão ou peão. Pois em mim eles eram: os loucos vilões, ou os cavaleiros valorosos, ou os dispensáveis soldados, em guerra eterna de todos contra todos e tudos, se misturando sempre, e desmisturando diferentes, e Reis e Magos e Bruxos e Princesas, em enredos desencontrados por maus atores que eram – ou pela vida ser assim mesmo: ninguém entendendo seus papéis, nunca.

Minha meninice sendo assim a aquela invencionice minha, somente; e os alguns adultos sem entender minha sempre brincadeira, pegando à véra aquilo que era de brincadeira, e desfazendo de minhas doidices, graças a Deus. Pelo quê, peguei a crescer quando fui de Bom Lugar s’imbora para Mossoró, por estudos.

Lembro de lá ser dois: líder e chefe repuxando os rumos na escola, eu-somente em casa ou na Rua. Em casa eu forçava poesia, pelo muito que chorei no início daquela metade de segunda parte. Ao que foi, naquela época: brincar sozinho com as minhas verdades no início, para repartir com os outros as minhas mentiras depois.

Viver sendo sempre repartir mentiras, para caber na vida. A gente é, é grande demais, os espaços poucos no Mundo, e o tempo sendo outra coisa somente. A gente sempre guarda no fundo do tacho um restinho de nós-mesmos, pra Deus Menino se lambuzar no Juízo e ver o que presta e o que não presta. Acho que assim é, há de ser. Nojo de mim eu tive maior foi em saber disso, e perceber que somente raro se mente por não saber a verdade, que o normal é o mentir premeditado, doloso.

Dessas minhas bobéias, vergonhas tenho: quem sou eu pra sermão? E se for assim mesmo, e sendo verdades o que vejo mentiras, sendo eu O Idiota Estúrdio? Digo não, essas coisas, mais não. Ficou porque já disse, não desminto: Deus já viu, já tinha visto, até. Sendo Deus O Maior por ver as coisas sabendo o que foram e o que serão, Senhor De Todos Os Tempos. O tempo é de Deus somente. E Fé é crer que no Fim tudo vai dar certo, por mais errada que nos pareça a vida. E hoje eu tenho Fé, mas não foi sempre assim: ninguém nasce-morre Crente, somos gente por Duvidantes, também. Só bicho que sempre crê, e por isso desde sempre estão todos salvos. Eles, e Jó: “Post tenebras, spero lucem”.

De Mossoró, vim para Natal. Também por estudos, sendo a precisão de Aprender a força mandante nessa minha vida, reflito que desde o Início: pra isso que eu saí da barriga de minha mãe. Aprender é coisa que alegra, pra depois entristecer: eu figuro que estou sempre no Meio do Caminho, mas é sempre noite escura, e o Caminho talvez não tenha Fim – sendo assim que talvez não tenha nem Meio, nem Caminho. E sendo sempre Tudo e Nada com As Incertezas no Entre.

Natal, bom nome: Nasci de novo, e diferente. Sendo outro, sou Eu-Mesmo toda vida. Aqui fiz e desfiz amizades e amores, à custa de erros e acertos, e precisei de quebrar a cara, o coração e a perna, pra vislumbrar o que restou disso tudo. Sozinho-Dependente, com Deus por fora, que nem quando foi pra eu nascer da barriga de minha mãe, aí é que sempre me vejo melhor, me percebo mais, e o mundo torna a ser Novo. E eu não me canso, nunca, de Nascer.