terça-feira, 25 de agosto de 2009

Da Fé



"Estive por muito tempo perdido sem o saber. Sem fé, a gente é livre e essa é, a princípio, uma sensação agradável. Não existem questões de consciência, nem sujeições, exceto as sujeições impostas pelos costumes, pelas convenções e pela lei, mas estas são bastante flexíveis para a maioria dos propósitos. Só mais tarde é que chega o terror. É-se livre - mas livre em meio do caos, num mundo inexplicado e inexplicável. É-se livre num deserto, do qual não há recuo senão para dentro, para o âmago oco do nosso próprio ser. Nada há sobre que se construir, salvo a pequena rocha de nosso próprio orgulho, e isso é um nada, baseado em nada... Penso, logo sou. Mas que sou eu? Um acidente de desordem, indo para parte alguma..." (Morris West, O Advogado do Diabo)

(...)

"Como não ter Deus?! Com Deus existindo, tudo dá esperança: sempre um milagre é possível, o mundo se resolve. Mas, se não tem Deus, há-de a gente perdidos no vai-vem, e a vida é burra. É o aberto perigo das grandes e pequenas horas, não se podendo facilitar - é todos contra os acasos. Tendo Deus, é menos grave se descuidar um pouquinho, pois, no fim dá certo. Mas, se não tem Deus, então, a gente não tem licença de coisa nenhuma! Porque existe dôr." (Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas)

(...) "Cheio de Deus, não temo o que virá Pois venha o que vier nunca será Maior do que a minha alma." (Fernando Pessoa, Mensagem)


quarta-feira, 19 de agosto de 2009

Soldadinho de Chumbo, de Renato Braz


"Teu sorriso, bailarina...
E teu jeito me fascina;
Em meu peito baila a rima
Que o coração me ensina.

Aproveito, bailarina,
Pra falar da minha sina
De soldado apaixonado, desarmado
Por teus olhos de menina.

Dentro do meu peito de brinquedo
Bate um coração sem medo
Que te pede, que te diz:
'Deixa eu entrar na tua dança
Que uma estória de criança
Tem que ter final feliz'".

http://vagalume.uol.com.br/renato-braz/soldadinho-de-chumbo.html

Sublime na voz de Monica Salmaso...

(imagem lá de cima tomada de empréstimo junto ao http://historiasencantar.blogspot.com)

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

De Leituras e Livros


"Seja como for, enquanto não chega esse dia, os livros estão aqui, como uma galáxia pulsante, e as palavras, dentro deles, são outra poeira cósmica flutuando, à espera do olhar que as irá fixar num sentido ou nelas procurará o sentido novo, porque assim como vão variando as explicações do universo, também a sentença que antes parecera imutável para todo o sempre oferece subitamente outra interpretação, a possibilidade duma contradição latente, a evidência do seu erro próprio." (José Saramago, História do Cerco de Lisboa)


"Cada livro, cada volume que você vê, tem alma. A alma de quem o escreveu, e a alma dos que o leram, que viveram e sonharam com ele. Cada vez que um livro troca de mãos, cada vez que alguém passa os olhos pelas suas páginas, seu espírito cresce e a pessoa se fortalece. (...) Quando uma biblioteca desaparece, quando uma livraria fecha as suas portas, quando um livro se perde no esquecimento, nós, guardiãos, os que conhecemos este lugar, garantimos que ele venha para cá. (...) Na loja, nós os vendemos e compramos, mas na verdade os livros não têm dono. Cada livro que você vê aqui foi o melhor amigo de um homem. (...)
- É hábito nosso, da primeira vez que alguém visita este lugar, que escolha um livro, aquele que preferir, e que o adote, garantindo assim que nunca desapareça, que se mantenha vivo para sempre. É uma promessa muito importante. (...)
(...) Aos poucos, assaltou-me a idéia de que atrás da capa de cada um daqueles l
ivros se abria um infinito universo por explorar e que, fora daquelas paredes, o mundo deixava que a tarde passasse em tardes de futebol e em novelas de rádio, satisfeito em ver apenas até onde vai o seu umbigo e pouco mais." (Carlos Ruiz Zafón, A Sombra do Vento).

"Geralmente, quando nos referimos à literatura, pensamos no que tradicionalmente se costuma chamar 'belas letras' ou 'beletrística'. Trata-se, evidentemente, só de uma parcela da literatura. Na acepção lata, literatura é tudo o que aparece fixado por meio de letras - obras científicas, reportagens, notícias, textos de propaganda, livros didáticos, receitas de cozinha, etc. Dentro deste vasto campo das letras, as belas letras representam um setor restrito. Seu traço distintivo parece ser menos a beleza das letras
do que seu caráter fictício ou imaginário. A delimitação do campo da beletrística pelo caráter ficcional ou imaginário tem a vantagem de basear-se em momentos de 'lógica literária' que, na maioria dos casos, podem ser verificados com certo rigor, sem que seja necessário recorrer a valorizações estéticas. Contudo o critério do caráter ficcional ou imaginário não satisfaz inteiramente o propósito de delimitar o campo da literatura no sentido restrito. A literatura de cordel tem caráter ficcional, mas não se pode dizer o mesmo dos Sermões do Padre Vieira, nem dos escritos de Pascal, nem provavelmente dos diários de Gide ou Kafka. Será ficção o poema didático De Rerum Natura, de Lucrécio? No entanto, nenhum historiador da literatura hesitará em eliminar das suas obras os romances triviais de baixo entretenimento e em nelas acolher os escritos mencionados. Parece portanto impossível renunciar por inteiro a critérios de valorização, principalmente estética, que como tais não atingem objetividade científica embora se possa ao menos postular certo consenso universal." (Antonio Candido e Ruma, A Personagem de Ficção).

"A poesia não é menos misteriosa que os outros elementos do orbe. Tal ou qual verso afortunado não pode envaidecer-nos, porque é dom do Acaso ou do Espírito; só os erros são nossos. Espero que o leitor descubra em minhas páginas algo que possa merecer sua memória; neste mundo a beleza é comum." (Jorge Luis Borges, Elogio da Sombra).

terça-feira, 11 de agosto de 2009

Californication: o seriado, não a música...


"Fuck".

É tudo o que o escritor fudido Hank Moody consegue botar "no papel" no final de um dia, no primeiro episódio desse seriado. E que episódio... Em meia hora, Hank Moddy... Dois pontos: começa encarando Deus no que deveria ser uma conversa de homem para Homem ("Ok, Big Guy: you and me..."), acorda recebendo um boquete de uma "freira", tem o carro estiloso amassado pelo taco de beisebol de um corno, e, logo em seguida e ainda sem as calças - perdidas na casa da mulher que o acordou chupando-lhe -, vai apanhar a filha para o dia que a custódia limitada lhe permite passar junto a ela... E por aí vai...

Show, o seriado - que não é nenhum lançamento, já terminou inclusive a segunda temporada, mas que só agora eu baixei os episódios e pude assisti-los com mais calma e deleite.

Muito sexo, diálogos rápidos e inteligentes, trilha sonora bem interessante, David Duchovny demonstrando um charme vagabundo impressionante e insuspeito, um quê de prosa moderna e questionamentos urbanos contemporâneos... E alguns clichês a serem aparados (nem tudo é perfeito, é claro), mas tudo encadeado e rico em sentido: a melhor meia hora de um seriado que eu jamais tive o prazer de assistir.

O carinha é um tremendo fazedor de merdas, que aparentemente estragou o seu caso com a loiraça mãe de sua filha e, no mesmo embalo, perdeu o rumo da vida e enfiou-se até as orelhas na esbórnia. Quis fazer estilo, ao que parece, e, tentando fugir de quaisquer clichês, findou sendo ele mesmo um clichê ambulante e vazio. Perdendo o amor da única mulher digna do seriado, ele perdeu também o sentido de sua vidinha, e findou fazendo do cinismo não um meio, mas um fim em si mesmo. Sem sentido, sem literatura: o cara não consegue mais escrever - exceto "Fuck" / "Porra", diria eu.